A atitude científica _ Convite à Filosofia

Convite à Filosofia
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Capítulo 1

A atitude científica

O senso comum
O Sol é menor do que a Terra. Quem duvidará disso se, diariamente, vemos um
pequeno círculo avermelhado percorrer o céu, indo de leste para oeste?
O Sol se move em torno da Terra, que permanece imóvel. Quem duvidará disso,
se diariamente vemos o Sol nascer, percorrer o céu e se pôr? A aurora não é o seu
começo e o crepúsculo, seu fim?
As cores existem em si mesmas. Quem duvidará disso, se passamos a vida vendo
rosas vermelhas, amarelas e brancas, o azul do céu, o verde das árvores, o
alaranjado da laranja e da tangerina?
Cada gênero e espécie de animal já surgiram tais como os conhecemos. Alguém
poderia imaginar um peixe tornar-se réptil ou um pássaro? Para os que são
religiosos, os livros sagrados não ensinam que a divindade criou de uma só vez
todos os animais, num só dia?
A família é uma realidade natural criada pela Natureza para garantir a
sobrevivência humana e para atender à afetividade natural dos humanos, que
sentem a necessidade de viver juntos. Quem duvidará disso, se vemos, no mundo
inteiro, no passado e no presente, a família existindo naturalmente e sendo a
célula primeira da sociedade?
A raça é uma realidade natural ou biológica produzida pela diferença dos climas,
da alimentação, da geografia e da reprodução sexual. Quem duvidará disso, se
vemos que os africanos são negros, os asiáticos são amarelos de olhos puxados,
os índios são vermelhos e os europeus, brancos? Se formos religiosos, saberemos
que os negros descendem de Caim, marcado por Deus, e de Cam, o filho
desobediente de Noé.
Certezas como essas formam nossa vida e o senso comum de nossa sociedade,
transmitido de geração em geração, e, muitas vezes, transformando-se em crença
religiosa, em doutrina inquestionável.
A astronomia, porém, demonstra que o Sol é muitas vezes maior do que a Terra
e, desde Copérnico, que é a Terra que se move em torno dele. A física óptica
demonstra que as cores são ondas luminosas de comprimentos diferentes, obtidas
pela refração e reflexão, ou decomposição, da luz branca. A biologia demonstra
que os gêneros e as espécies de animais se formaram lentamente, no curso de
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milhões de anos, a partir de modificações de microorganismos extremamente
simples.
Historiadores e antropólogos mostram que o que entendemos por família (pai,
mãe, filhos; esposa, marido, irmãos) é uma instituição social recentíssima – data
do século XV – e própria da Europa ocidental, não existindo na Antiguidade,
nem nas sociedades africanas, asiáticas e americanas pré-colombianas. Mostram
também que não é um fato natural, mas uma criação sociocultural, exigida por
condições históricas determinadas.
Sociólogos e antropólogos mostram que a idéia de raça também é recente – data
do século XVIII -, sendo usada por pensadores que procuravam uma explicação
para as diferenças físicas e culturais entre os europeus e os povos conhecidos a
partir do século XIV, com as viagens de Marco Pólo, e do século XV, com as
grandes navegações e as descobertas de continentes ultramarinos.
Ao que parece, há uma grande diferença entre nossas certezas cotidianas e o
conhecimento científico. Como e por que ela existe?
Características do senso comum
Um breve exame de nossos saberes cotidianos e do senso comum de nossa
sociedade revela que possuem algumas características que lhes são próprias:
? são subjetivos, isto é, exprimem sentimentos e opiniões individuais e de
grupos, variando de uma pessoa para outra, ou de um grupo para outro,
dependendo das condições em que vivemos. Assim, por exemplo, se eu for
artista, verei a beleza da árvore; se eu for marceneira, a qualidade da madeira; se
estiver passeando sob o Sol, a sombra para descansar; se for bóia-fria, os frutos
que devo colher para ganhar o meu dia. Se eu for hindu, uma vaca será sagrada
para mim; se for dona de um frigorífico, estarei interessada na qualidade e na
quantidade de carne que poderei vender;
? são qualitativos, isto é, as coisas são julgadas por nós como grandes ou
pequenas, doces ou azedas, pesadas ou leves, novas ou velhas, belas ou feias,
quentes ou frias, úteis ou inúteis, desejáveis ou indesejáveis, coloridas ou sem
cor, com sabor, odor, próxi mas ou distantes, etc.;
? s ão heterogêneos, isto é, referem-se a fatos que julgamos diferentes, porque os
percebemos como diversos entre si. Por exemplo, um corpo que cai e uma pena
que flutua no ar são acontecimentos diferentes; sonhar com água é diferente de
sonhar com uma escada, etc.;
? s ão individualizadores por serem qualitativos e heterogêneos, isto é, cada coisa
ou cada fato nos aparece como um indivíduo ou como um ser autônomo: a seda é
macia, a pedra é rugosa, o algodão é áspero, o mel é doce, o fogo é quente, o
mármore é frio, a madeira é dura, etc.;
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? mas também são generalizadores, pois tendem a reunir numa só opinião ou
numa só idéia coisas e fatos julgados semelhantes: falamos dos animais, das
plantas, dos seres humanos, dos astros, dos gatos, das mulheres, das crianças, das
esculturas, das pinturas, das bebidas, dos remédios, etc.;
? em decorrência das generalizações, tendem a estabelecer relações de causa e
efeito entre as coisas ou entre os fatos: “onde há fumaça, há fogo”; “quem tudo
quer, tudo perde”; “dize-me com quem andas e te direi quem és”; a posição dos
astros determina o destino das pessoas; mulher menstruada não deve tomar banho
frio; ingerir sal quando se tem tontura é bom para a pressão; mulher assanhada
quem ser estuprada; menino de rua é delinqüente, etc.;
? não se surpreendem e nem se admiram com a regularidade, constância,
repetição e diferença das coisas, mas, ao contrário, a admiração e o espanto se
dirigem para o que é imaginado como único, extraordinário, maravilhoso ou
miraculoso. Justamente por isso, em nossa sociedade, a propaganda e a moda
estão sempre inventando o “extraordinário”, o “nunca visto”;
? pelo mesmo motivo e não por compreenderem o que seja investigação
científica, tendem a identificá-la com a magia, considerando que ambas lidam
com o misterioso, o oculto, o incompreensível. Essa imagem da ciência como
magia aparece, por exemplo, no cinema, quando os filmes mostram os
laboratórios científicos repletos de objetos incompreensíveis, com luzes que
acendem e apagam, tubos de onde saem fumaças coloridas, exatamente como são
mostradas as cavernas ocultas dos magos. Essa mesma identificação entre ciência
e magia aparece num programa da televisão brasileira, o Fantástico, que, como o
nome indica, mostra aos telespectadores resultados científicos como se fossem
espantosa obra de magia, assim como exibem magos ocultistas como se fossem
cientistas;
? costumam projetar nas coisas ou no mundo sentimentos de angústia e de medo
diante do desconhecido. Assim, durante a Idade Média, as pessoas viam o
demônio em toda a parte e, hoje, enxergam discos voadores no espaço;
? por serem subjetivos, generalizadores, expressões de sentimentos de medo e
angústia, e de incompreensão quanto ao trabalho científico, nossas certezas
cotidianas e o senso comum de nossa sociedade ou de nosso grupo social
cristalizam-se em preconceitos com os quais passamos a interpretar toda a
realidade que nos cerca e todos os acontecimentos.
A atitude científica
O que distingue a atitude científica da atitude costumeira ou do senso comum?
Antes de qualquer coisa, a ciência desconfia da veracidade de nossas certezas, de
nossa adesão imediata às coisas, da ausência de crítica e da falta de curiosidade.
Por isso, ali onde vemos coisas, fatos e acontecimentos, a atitude científica vê
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problemas e obstáculos, aparências que precisam ser explicadas e, em certos
casos, afastadas.
Sob quase todos os aspectos, podemos dizer que o conhecimento científico opõese
ponto por ponto às características do senso comum:
? é objetivo, isto é, procura as estrutur as universais e necessárias das coisas
investigadas;
? é quantitativo, isto é, busca medidas, padrões, critérios de comparação e
avaliação para coisas que parecem ser diferentes. Assim, por exemplo, as
diferenças de cor são explicadas por diferenças de um mesmo padrão ou critério
de medida, o comprimento das ondas luminosas; as diferenças de intensidade dos
sons, pelo comprimento das ondas sonoras; as diferenças de tamanho, pelas
diferenças de perspectiva e de ângulos de visão, etc.;
? é homogêneo, isto é, busca as leis gerais de funcionamento dos fenômenos, que
são as mesmas para fatos que nos parecem diferentes. Por exemplo, a lei
universal da gravitação demonstra que a queda de uma pedra e a flutuação de
uma pluma obedecem à mesma lei de atração e repulsão no interior do campo
gravitacional; a estrela da manhã e a estrela da tarde são o mesmo planeta,
Vênus, visto em posições diferentes com relação ao Sol, em decorrência do
movimento da Terra; sonhar com água e com uma escada é ter o mesmo tipo de
sonho, qual seja, a realização dos desejos sexuais reprimidos, etc.;
? é generalizador, pois reúne individualidades, percebidas como diferentes, sob
as mesmas leis, os mesmos padrões ou critérios de medida, mostrando que
possuem a mesma estrutura. Assim, por exemplo, a química mostra que a enorme
variedade de corpos se reduz a um número limitado de corpos simples que se
combinam de maneiras variadas, de modo que o número de elementos é
infinitamente menor do que a variedade empírica dos compostos;
? são diferenciadores, pois não reúnem nem generalizam por semelhanças
aparentes, mas distinguem os que parecem iguais, desde que obedeçam a
estruturas diferentes. Lembremos aqui um exemplo que usamos no capítulo sobre
a linguagem, quando mostramos que a palavra queijo parece ser a mesma coisa
que a palavra inglesa cheese e a palavra francesa fromage, quando, na realidade,
são muito diferentes, porque se referem a estruturas alimentares diferentes;
? só estabelecem relações causais depois de investigar a natureza ou estrutura do
fato estudado e suas relações com outros semelhantes ou diferentes. Assim, por
exemplo, um corpo não cai porque é pesado, mas o peso de um corpo depende
do campo gravitacional onde se encontra – é por isso que, nas naves espaciais,
onde a gravidade é igual a zero, todos os corpos flutuam, independentemente do
peso ou do tamanho; um corpo tem uma certa cor não porque é colorido, mas
porque, dependendo de sua composição química e física, reflete a luz de uma
determinada maneira, etc.;
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? surpreende-se com a regularidade, a constância, a freqüência, a repetição e a
diferença das coisas e procura mostrar que o maravilhoso, o extraordinário ou o
“milagroso” é um caso particular do que é regular, normal, freqüente. Um
eclipse, um terremoto, um furacão, embora excepcionais, obedecem às leis da
física. Procura, assim, apresentar explicações racionais, claras, simples e
verdadeiras para os fatos, opondo-se ao espetacular, ao mágico e ao fantástico;
? distingue-se da magia. A magia admite uma participação ou simpatia secreta
entre coisas diferentes, que agem umas sobre as outras por meio de qualidades
ocultas e considera o psiquismo humano uma força capaz de ligar-se a
psiquismos superiores (planetários, astrais, angélicos, demoníacos) para provocar
efeitos inesperados nas coisas e nas pessoas. A atitude científica, ao contrário,
opera um desencantamento ou desenfeitiçamento do mundo, mostrando que nele
não agem forças secretas, mas causas e relações racionais que podem ser
conhecidas e que tais conhecimentos podem ser transmitidos a todos;
? afirma que, pelo conhecimento, o homem pode libertar-se do medo e das
superstições, deixando de projetá-los no mundo e nos outros;
? procura renovar-se e modificar-se continuamente, evitando a transformação das
teorias em doutrinas, e destas em preconceitos sociais. O fato científico resulta de
um trabalho paciente e lento de investigação e de pesquisa racional, aberto a
mudanças, não sendo nem um mistério incompreensível nem uma doutrina geral
sobre o mundo.
Os fatos ou objetos científicos não são dados empíricos espontâneos de nossa
experiência cotidiana, mas são construídos pelo trabalho da investigação
científica. Esta é um conjunto de atividades intelectuais, experimentais e
técnicas, realizadas com base em métodos que permitem e garantem:
? separar os elementos subjetivos e objetivos de um fenômeno;
? construir o fenômeno como um objeto do conhecimento, controlável,
verificável, interpretável e capaz de ser retificado e corrigido por novas
elaborações;
? demonstrar e provar os resultados obtidos durante a investigação, graças ao
rigor das relações definidas entre os fatos estudados; a demonstração deve ser
feita não só para verificar a validade dos resultados obtidos, mas também para
prever racionalmente novo s fatos como efeitos dos já estudados;
? relacionar com outros fatos um fato isolado, integrando-o numa explicação
racional unificada, pois somente essa integração transforma o fenômeno em
objeto científico, isto é, em fato explicado por uma teoria;
? formular uma teoria geral sobre o conjunto dos fenômenos observados e dos
fatos investigados, isto é, formular um conjunto sistemático de conceitos que
expliquem e interpretem as causas e os efeitos, as relações de dependência,
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identidade e diferença entre todos os objetos que constituem o campo
investigado.
Delimitar ou definir os fatos a investigar, separando-os de outros semelhantes ou
diferentes; estabelecer os procedimentos metodológicos para observação,
experimentação e verificação dos fatos; construir instrumentos técnicos e
condições de laboratório específicas para a pesquisa; elaborar um conjunto
sistemático de conceitos que formem a teoria geral dos fenômenos estudados,
que controlem e guiem o andamento da pesquisa, além de ampliá-la com novas
investigações, e permitam a previsão de fatos novos a partir dos já conhecidos:
esses são os pré-requisitos para a constituição de uma ciência e as exigências da
própria ciência.
A ciência distingue-se do senso comum porque este é uma opinião baseada em
hábitos, preconceitos, tradições cristalizadas, enquanto a primeira baseia-se em
pesquisas, investigações metódicas e sistemáticas e na exigência de que as teorias
sejam internamente coerentes e digam a verdade sobre a realidade. A ciência é
conhecimento que resulta de um trabalho racional.
O que é uma teoria científica?
É um sistema ordenado e coerente de proposições ou enunciados baseados em
um pequeno número de princípios, cuja finalidade é descrever, explicar e prever
do modo mais completo possível um conjunto de fenômenos, oferecendo suas
leis necessárias. A teoria científica permite que uma multiplicidade empírica de
fatos aparentemente muito diferentes sejam compreendidos como semelhantes e
submetidos às mesmas leis; e, vice-versa, permite compreender por que fatos
aparentemente semelhantes são diferentes e submetidos a leis diferentes.
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Capítulo 2


A ciência na História


As três principais concepções de ciência
Historicamente, três têm sido as principais concepções de ciência ou de ideais de
cientificidade: o racionalista, cujo modelo de objetividade é a matemática; o
empirista, que toma o modelo de objetividade da medicina grega e da história
natural do século XVII; e o construtivista, cujo modelo de objetividade advém da
idéia de razão como conhecimento aproximativo.
A concepção racionalista – que se estende dos gregos até o final do século XVII
– afirma que a ciência é um conhecimento racional dedutivo e demonstrativo
como a matemática, portanto, capaz de provar a verdade necessária e universal de
seus enunciados e resultados, sem deixar qualquer dúvida possível. Uma ciência
é a unidade sistemática de axiomas, postulados e definições, que determinam a
natureza e as propriedades de seu objeto, e de demonstrações, que provam as
relações de causalidade que regem o objeto investigado.
O objeto científico é uma representação intelectual universal, necessária e
verdadeira das coisas representadas e corresponde à própria realidade, porque
esta é racional e inteligível em si mesma. As experiências científicas são
realizadas apenas para verificar e confirmar as demonstrações teóricas e não para
produzir o conhecimento do objeto, pois este é conhecido exclusivamente pelo
pensamento. O objeto científico é matemático, porque a realidade possui uma
estrutura matemática, ou como disse Galileu, “o grande livro da Natureza está
escrito em caracteres matemáticos”.
A concepção empirista – que vai da medicina grega e Aristóteles até o final do
século XIX – afirma que a ciência é uma interpretação dos fatos baseada em
observações e experimentos que permitem estabelecer induções e que, ao serem
completadas, oferecem a definição do objeto, suas propriedades e suas leis de
funcionamento. A teoria científica resulta das observações e dos experimentos,
de modo que a experiência não tem simplesmente o papel de verificar e
confirmar conceitos, mas tem a função de produzi-los. Eis por que, nesta
concepção, sempre houve grande cuidado para estabelecer métodos
experimentais rigorosos, pois deles dependia a formulação da teoria e a definição
da objetividade investigada.
Essas duas concepções de cientificidade possuíam o mesmo pressuposto, embora
o realizassem de maneiras diferentes. Ambas consideravam que a teoria científica
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era uma explicação e uma representação verdadeira da própria realidade, tal
como esta é em si mesma. A ciência era uma espécie de raio-X da realidade. A
concepção racionalista era hipotético-dedutiva, isto é, definia o objeto e suas
leis e disso deduzia propriedades, efeitos posteriores, previsões. A concepção
empirista era hipotético-indutiva, isto é, apresentava suposições sobre o objeto,
realizava observações e experimentos e chegava à definição dos fatos, às suas
leis, suas propriedades, seus efeitos posteriores e previsões.
A concepção construtivista – iniciada no século passado – considera a ciência
uma construção de modelos explicativos para a realidade e não uma
representação da própria realidade. O cientista combina dois procedimentos –
um, vindo do racionalismo, e outro, vindo do empirismo – e a eles acrescenta um
terceiro, vindo da idéia de conhecimento aproximativo e corrigível.
Como o racionalista, o cientista construtivista exige que o método lhe permita e
lhe garanta estabelecer axiomas, postulados, definições e deduções sobre o objeto
científico. Como o empirista, o construtivista exige que a experimentação guie e
modifique axiomas, postulados, definições e demonstrações. No entanto, porque
considera o objeto uma construção lógico-intelectual e uma construção
experimental feita em laboratório, o cientista não espera que seu trabalho
apresente a realidade em si mesma, mas ofereça estruturas e modelos de
funcionamento da realidade, explicando os fenômenos observados. Não espera,
portanto, apresentar uma verdade absoluta e sim uma verdade aproximada que
pode ser corrigida, modificada, abandonada por outra mais adequada aos
fenômenos. São três as exigências de seu ideal de cientificidade:
1. que haja coerência (isto é, que não haja contradições) entre os princípios que
orientam a teoria;
2. que os modelos dos objetos (ou estruturas dos fenômenos) sejam construídos
com base na observação e na experimentação;
3. que os resultados obtidos possam não só alterar os modelos construídos, mas
também alterar os próprios princípios da teoria, corrigindo-a.
Diferenças entre a ciência antiga e a moderna
Quando apresentamos os ideais de cientificidade, dissemos que tanto o ideal
racionalista quanto o empirista se iniciaram com os gregos. Isso, porém, não
significa que a concepção antiga e a moderna (século XVII) de ciência sejam
idênticas.
Tomemos um exemplo que nos ajude a perceber algumas das diferenças entre
antigos e modernos.
Aristóteles escreveu uma Física. O objeto físico ou natural, diz Aristóteles,
possui duas características principais: em primeiro lugar, existe e opera
independentemente da presença, da vontade e da ação humanas; em segundo
lugar, é um ser em movimento, isto é, em devir, sofrendo alterações qualitativas,
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quantitativas e locais; nasce, vive e morre ou desaparece. A Física estuda,
portanto, os seres naturais submetidos à mudança.
O mundo, escreve Aristóteles, divide-se em duas grandes regiões naturais, cuja
diferença é dada pelo tipo de substância, de matéria e de forma dos seres de cada
uma delas. A região celeste, formada de Sete Céus ou Sete Esferas, onde estão os
astros, tem como substância o éter, matéria sutil e diáfana, forma universal que
não sofre mudanças qualitativas nem quantitativas, mas apenas a mudança ou
movimento local, realizando eternamente o mais perfeito dos movimentos, o
circular. A segunda região é a sublunar ou terrestre - nosso mundo -, constituída
por quatro substâncias ou elementos – terra, água, ar e fogo -, de cujas
combinações surgem todos os seres. São substâncias fortemente materiais e,
portanto (como vimos no estudo da metafísica aristotélica), fortemente potenciais
ou virtuais, transformando-se sem cessar. A região sublunar é o mundo das
mudanças de forma, ou da passagem contínua de uma forma a outra, para
atualizar o que está em potência na matéria.
Os seres físicos não se movem da mesma maneira (não se transformam nem se
deslocam da mesma maneira). Seus movimentos e mudanças dependem da
qualidade de suas matérias e da quantidade em que cada um dos quatro
elementos materiais existe combinado com os outros num corpo.
Deixemos de lado todas as modalidades de movimentos estudadas por Aristóteles
e examinemos apenas uma: o movimento local. Os corpos, diz o filósofo,
procuram atualizar suas potências materiais, atualizando-se em formas diferentes.
Cada modalidade de matéria realiza sua forma perfeita de maneira diferente das
outras.
No caso do movimento local, a matéria define lugares naturais, isto é, locais
onde ela se atualiza ou se realiza melhor do que em outros. Assim, os corpos
pesados (nos quais predomina o elemento terra) têm como lugar natural o centro
da Terra e por isso o movimento local natural dos pesados é a queda. Os corpos
leves (nos quais predomina o elemento fogo) têm como lugar natural o céu e por
isso seu movimento local natural é subir. Os corpos não inteiramente leves (nos
quais predomina o elemento ar) buscam seu lugar natural no espaço rarefeito e
por isso seu movimento local natural é flutuar. Enfim, os corpos não totalmente
pesados (nos quais predomina o elemento água) buscam seu lugar natural no
líquido e por isso seu movimento local natural é boiar nas águas.
Além dos movimentos naturais, os corpos podem ser submetidos a movimentos
violentos, isto é, àqueles que contrariam sua natureza e os impedem de alcançar
seu lugar natural. Por exemplo, quando o arqueiro lança uma flecha, imprime
nela um movimento violento, pois força-a a permanecer no ar, embora seu lugar
natural seja a terra e seu movimento natural seja a queda.
Este pequeno resumo da Física aristotélica nos mostra algumas características
marcantes da ciência antiga:
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? é uma ciência baseada nas qualidades percebidas nos corpos (leve, pesado,
líquido, sólido, etc.);
? é uma ciência baseada em distinções qualitativas do espaço (alto, baixo, longe,
perto, celeste, sublunar);
? é uma ciência baseada na metafísica da identidade e da mudança (perfeição
imóvel, imperfeição móvel);
? é uma ciência que estabelece leis diferentes para os corpos segundo sua matéria
e sua forma, ou segundo sua substância;
? como conseqüência das características anteriores, é uma ciência que concebe a
realidade natural como um mo delo hierárquico no qual os seres possuem um
lugar natural de acordo com sua perfeição, hierarquizando-se em graus que vão
dos inferiores aos superiores.
Quando comparamos a física de Aristóteles com a moderna, isto é, a que foi
elaborada por Galileu e Newton, podemos notar as grandes diferenças:
? para a física moderna, o espaço é aquele definido pela geometria, portanto,
homogêneo, sem distinções qualitativas entre alto, baixo, frente, atrás, longe,
perto. É um espaço onde todos os pontos são reversíveis ou equivalentes, de
modo que não há “lugares naturais” qualitativamente diferenciados;
? os objetos físicos investigados pelo cientista começam por ser purificados de
todas as qualidades sensoriais – cor, tamanho, odor, peso, matéria, forma,
líquido, sólido, leve, grande, pequeno, etc. -, isto é, de todas as qualidades
sensíveis, porque estas são meramente subjetivas. O objeto é definido por
propriedades objetivas gerais, válidas para todos os seres físicos: massa, volume,
figura. Torna-se irrelevante o tipo de matéria, de forma ou de substância de um
corpo, pois todos se comportam fisicamente da mesma maneira. Torna-se inútil a
distinção entre um mundo celeste e um mundo sublunar, pois astros e corpos
terrestres obedecem às mesmas leis universais da física;
? a física estuda o movimento não como alteração qualitativa e quantitativa dos
corpos, mas como deslocamento espacial que altera a massa, o volume e a
velocidade dos corpos. O movimento e o repouso são as propriedades físicas
objetivas de todos os corpos da Natureza e todos eles obedecem às mesmas leis –
aquelas que Galileu formulou com base no princípio da inércia (um corpo se
mantém em movimento indefinidamente, a menos que encontre um outro que lhe
faça obstáculo ou que o desvie de seu trajeto); e aquelas formuladas por Newton,
com base no princípio universal da gravitação (a toda ação corresponde uma
reação que lhe é igual e contrária). Não há diferença entre movimento natural e
movimento violento, pois todo e qualquer movimento obedece às mesmas leis;
? a Natureza é um complexo de corpos formados por proporções diferentes de
movimento e de repouso, articulados por relações de causa e efeito, sem
finalidade, pois a idéia de finalidade só existe para os seres humanos dotados de
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razão e vontade. Os corpos não se movem, portanto, em busca de perfeição, mas
porque a causa eficiente do movimento os faz moverem-se. A física é uma
mecânica universal.
A física da Natureza se torna geométrica, experimental, quantitativa, causal ou
mecânica (relações entre a causa eficiente e seus efeitos) e suas leis têm valor
universal, independentemente das qualidades sensíveis das coisas. Terra, mar e ar
obedecem às mesmas leis naturais. A Natureza é a mesma em toda parte e para
todos os seres, não existindo hierarquias ou graus de imperfeição-perfeição,
inferioridade-superioridade.
Há, ainda, uma outra diferença profunda entre a ciência antiga e a moderna. A
primeira era uma ciência teorética, isto é, apenas contemplava os seres naturais,
sem jamais imaginar intervir neles ou sobre eles. A técnica era um saber
empírico, ligado a práticas necessárias à vida e nada tinha a oferecer à ciência
nem a receber dela. Numa sociedade escravista, que deixava tarefas, trabalhos e
serviços aos escravos, a técnica era vista como uma forma menor de
conhecimento.
Duas afirmações mostram a diferença dos modernos em relação aos antigos: a
afirmação do filósofo inglês Francis Bacon, para quem “saber é poder”, e a
afirmação de Descartes, para quem “a ciência deve tornar-nos senhores da
Natureza”. A ciência moderna nasce vinculada à idéia de intervir na Natureza, de
conhecê-la para apropriar-se dela, para controlá-la e dominá-la. A ciência não é
apenas contemplação da verdade, mas é sobretudo o exercício do poderio
humano sobre a Natureza. Numa sociedade em que o capitalismo está surgindo e,
para acumular o capital, deve ampliar a capacidade do trabalho humano para
modificar e explorar a Natureza, a nova ciência será inseparável da técnica.
Na verdade, é mais correto falar em tecnologia do que em técnica. De fato, a
técnica é um conhecimento empírico, que, graças à observação, elabora um
conjunto de receitas e práticas para agir sobre as coisas. A tecnologia, porém, é
um saber teórico que se aplica praticamente.
Por exemplo, um relógio de sol é um objeto técnico que serve para marcar horas
seguindo o movimento solar no céu. Um cronômetro, porém, é um objeto
tecnológico: por um lado, sua construção pressupõe conhecimentos teóricos
sobre as leis do movimento (as leis do pêndulo) e, por outro lado, seu uso altera a
percepção empírica e comum dos objetos, pois serve para medir aquilo que nossa
percepção não consegue perceber. Uma lente de aumento é um objeto técnico,
mas o telescópio e o microscópio são objetos tecnológicos, pois sua construção
pressupõe o conhecimento das leis científicas definidas pela óptica. Em outras
palavras, um objeto é tecnológico quando sua construção pressupõe um saber
científico e quando seu uso interfere nos resultados das pesquisas científicas. A
ciência moderna tornou-se inseparável da tecnologia.
Marilena Chauí
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As mudanças científicas
Vimos até aqui duas grandes mudanças na ciência. A primeira delas se refere à
passagem do racionalismo e empirismo ao construtivismo, isto é, de um ideal de
cientificidade baseado na idéia de que a ciência é uma representação da realidade
tal como ela é em si mesma, a um ideal de cientificidade baseado na idéia de que
o objeto científico é um modelo construído e não uma representação do real, uma
aproximação sobre o modo de funcionamento da realidade, mas não o
conhecimento absoluto dela. A segunda mudança refere-se à passagem da ciência
antiga – teorética, qualitativa – à ciência moderna – tecnológica, quantitativa. Por
que houve tais mudanças no pensamento científico?
Durante certo tempo, julgou-se que a ciência (como a sociedade) evolui e
progride. Evolução e progresso são duas idéias muito recentes – datam dos
séculos XVIII e XIX -, mas muito aceitas pelas pessoas. Basta ver o lema da
bandeira brasileira para perceber como as pessoas acham natural falar em
“Ordem e Progresso”.
As noções de evolução e de progresso partem da suposição de que o tempo é uma
linha reta contínua e homogênea (como a imagem do rio, que vimos ao estudar a
metafísica). O tempo seria uma sucessão contínua de instantes, momentos, fases,
períodos, épocas, que iriam se somando uns aos outros, acumulando-se de tal
modo que o que acontece depois é o resultado melhorado do que aconteceu antes.
Contínuo e cumulativo, o tempo seria um aperfeiçoamento de todos os seres
(naturais e humanos).
Evolução e progresso são a crença na superioridade do presente em relação ao
passado e do futuro em relação ao presente. Assim, os europeus civilizados
seriam superiores aos africanos e aos índios, a física galileana-newtoniana seria
superior à aristotélica, a física quântica seria superior à de Galileu e de Newton.
Evoluir significa: tornar-se superior e melhor do que se era antes. Progredir
significa: ir num rumo cada vez melhor na direção de uma finalidade superior.
Evolução e progresso também supõem o tempo como uma série linear de
momentos ligados por relações de causa e efeito, em que o passado é causa e o
presente, efeito, vindo a tornar-se causa do futuro. Vemos essa idéia aparecer
quando, por exemplo, os manuais de História apresentam as “influências” que
um acontecimento anterior teria tido sobre um outro, posterior.
Evoluir e progredir pressupõem uma concepção de História semelhante à que a
biologia apresenta quando fala em germe, semente ou larva. O germe, a semente
ou a larva são entes que contêm neles mesmos tudo o que lhes acontecerá, isto é,
o futuro já está contido no ponto inicial de um ser, cuja história ou cujo tempo
nada mais é do que o desdobrar ou o desenvolver pleno daquilo que ele já era
potencialmente.
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Essa idéia encontra-se presente, por exemplo, na distinção entre países
desenvolvidos e subdesenvolvidos. Quando digo que um país é ou está
desenvolvido, digo que sei que alcançou a finalidade à qual estava destinado
desde que surgiu. Quando digo que um país é ou está subdesenvolvido, estou
dizendo que a finalidade – que é a mesma para ele e para o desenvolvido – ainda
não foi, mas deverá ser alcançada em algum momento do tempo. Não por acaso,
as expressões desenvolvido e subdesenvolvido foram usadas para substituir duas
outras, tidas como ofensivas e agressivas: países adiantados e países atrasados,
isto é, países evoluídos e não evoluídos, países com progresso e sem progresso.
Em resumo, evolução e progresso pressupõem: continuidade temporal,
acumulação causal dos acontecimentos, superioridade do futuro e do presente
com relação ao passado, existência de uma finalidade a ser alcançada.
Supunha-se que as mudanças científicas indicavam evolução ou progresso dos
conhecimentos humanos.
Desmentindo a evolução e o progresso científicos
A Filosofia das Ciências, estudando as mudanças científicas, impôs um
desmentido às idéias de evolução e progresso. Isso não quer dizer que a Filosofia
das Ciências viesse a falar em atraso e regressão científica, pois essas duas
noções são idênticas às de evolução e progresso, apenas com o sinal trocado (em
vez de caminhar causal e continuamente para frente, caminhar-se-ia causal e
continuamente para trás). O que a Filosofia das Ciências compreendeu foi que as
elaborações científicas e os ideais de cientificidade são diferentes e
descontínuos.
Quando, por exemplo, comparamos a geometria clássica ou geometria euclidiana
(que opera com o espaço plano) e a geometria contemporânea ou topológica (que
opera com o espaço tridimensional), vemos que não se trata de duas etapas ou de
duas fases sucessivas da mesma ciência geométrica, e sim de duas geometrias
diferentes, com princípios, conceitos, objetos, demonstrações completamente
diferentes. Não houve evolução e progresso de uma para outra, pois são duas
geometrias diversas e não geometrias sucessivas.
Quando comparamos as físicas de Aristóteles, Galileu-Newton e Einstein, não
estamos diante de uma mesma física, que teria evoluído ou progredido, mas
diante de três físicas diferentes, baseadas em princípios, conceitos,
demonstrações, experimentações e tecnologias completamente diferentes. Em
cada uma delas, a idéia de Natureza é diferente; em cada uma delas os métodos
empregados são diferentes; em cada uma delas o que se deseja conhecer é
diferente.
Quando comparamos a biologia genética de Mendel e a genética formulada pela
bioquímica (baseada na descoberta de enzimas, de proteínas do ADN ou código
genético), também não encontramos evolução e progresso, mas diferença e
Marilena Chauí
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descontinuidade. Assim, por exemplo, o modelo explicativo que orientava o
trabalho de Mendel era o da relação sexual como um encontro entre duas
entidades diferentes – o espermatozóide e o óvulo -, enquanto o modelo que
orienta a genética contemporânea é o da cibernética e da teoria da informação.
Quando comparamos a ciência da linguagem do século XIX (que era baseada nos
estudos de filologia, isto é, nos estudos da origem e da história das palavras) com
a lingüística contemporânea (que, como vimos no capítulo dedicado à linguagem,
estuda estruturas), vemos duas ciências diferentes. E o mesmo pode ser dito de
todas as ciências.
Verificou-se, portanto, uma descontinuidade e uma diferença temporal entre as
teorias científicas como conseqüência não de uma forma mais evoluída, mais
progressiva ou melhor de fazer ciência, e sim como resultado de diferentes
maneiras de conhecer e construir os objetos científicos, de elaborar os métodos e
inventar tecnologias. O filósofo Gaston Bachelard criou a expressão ruptura
epistemológicax para explicar essa descontinuidade no conhecimento científico.
Rupturas epistemológicas e revoluções científicas
Um cientista ou um grupo de cientistas começam a estudar um fenômeno
empregando teorias, métodos e tecnologias disponíveis em seu campo de
trabalho. Pouco a pouco, descobrem que os conceitos, os procedimentos, os
instrumentos existentes não explicam o que estão observando nem levam aos
resultados que estão buscando. Encontram, diz Bachelard, um “obstáculo
epistemológico”.
Para superar o obstáculo epistemológico, o cientista ou grupo de cientistas
precisam ter a coragem de dizer: Não. Precisam dizer não à teoria existente e aos
métodos e tecnologias existentes, realizando a ruptura epistemológica. Esta
conduz à elaboração de novas teorias, novos métodos e tecnologias, que afetam
todo o campo de conhecimentos existentes.
Uma nova concepção científica emerge, levando tanto a incorporar nela os
conhecimentos anteriores, quanto a afastá-los inteiramente. O filósofo da ciência
Khun designa esses momentos de ruptura epistemológica e de criação de novas
teorias com a expressão revolução científica, como, por exemplo, a revolução
copernicana, que substituiu a explicação geocêntrica pela heliocêntrica.
Segundo Khun, um campo científico é criado quando métodos, tecnologias,
formas de observação e experimentação, conceitos e demonstrações formam um
todo sistemático, uma teoria que permite o conhecimento de inúmeros
fenômenos. A teoria se torna um modelo de conhecimento ou um paradigma
científico. Em tempos normais, um cientista, diante de um fato ou de um
fenômeno ainda não estudado, usa o modelo ou o paradigma científico existente.
Uma revolução científica acontece quando o cientista descobre que os
paradigmas disponíveis não conseguem explicar um fenômeno ou um fato novo,
Convite à Filosofia
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sendo necessário produzir um outro paradigma, até então inexistente e cuja
necessidade não era sentida pelos investigadores.
A ciência, portanto, não caminha numa via linear contínua e progressiva, mas por
saltos ou revoluções.
Assim, quando a idéia de próton-elétron-nêutron entra na física, a de vírus entra
na biologia, a de enzima entra na química ou a de fonema entra na lingüística, os
paradigmas existentes são incapazes de alcançar, compreender e explicar esses
objetos ou fenômenos, exigindo a criação de novos modelos científicos.
Por que, então, temos a ilusão de progresso e de evolução? Por dois motivos
principais:
1. do lado do cientista, porque este sente que sabe mais e melhor do que antes, já
que o paradigma anterior não lhe permitia conhecer certos objetos ou fenômenos.
Como trabalhava com uma tradição científica e a abandonou, tem o sentimento
de que o passado estava errado, era inferior ao presente aberto por seu novo
trabalho. Não é ele, mas o filósofo da ciência que percebe a ruptura e a
descontinuidade e, portanto, a diferença temporal . Do lado do cientista, o
progresso é uma vivência subjetiva;
2. do lado dos não-cientistas, porque vivemos sob a ideologia do progresso e da
evolução, do “novo ” e do “fantástico”. Além disso, vemos os resultados
tecnológicos das ciências: naves espaciais, computadores, satélites, fornos de
microondas, telefones celulares, cura de doenças julgadas incuráveis, objetos
plásticos descartáveis, e esses resultados tecnológicos são apresentados pelos
governos, pelas empresas e pela propaganda como “signos do progresso” e não
da diferença temporal. Do lado dos não-cientistas, o progresso é uma crença
ideológica.
Há, porém, uma razão mais profunda para nossa crença no progresso. Desde a
Antiguidade, conhecer sempre foi considerado o meio mais precioso e eficaz para
combater o medo, a superstição e as crendices. Ora, no caso da modernidade, o
vínculo entre ciência e aplicação prática dos conhecimentos (tecnologias) fez
surgirem objetos que não só facilitaram a vida humana (meios de transporte, de
iluminação, de comunicação, de cultivo do solo, etc.), mas aumentaram a
esperança de vida (remédios, cirurgias, etc.). Do ponto de vista dos resultados
práticos, sentimos que estamos em melhores condições que os antigos e por isso
falamos em evolução e progresso.
Do ponto de vista das próprias teorias científicas, porém, a noção de progresso
não possui fundamento, como explicamos acima.
Falsificação X revolução
Vimos que a ciência contemporânea é construtivista, julgando que fatos e
fenômenos novos podem exigir a elaboração de novos métodos, novas
tecnologias e novas teorias.
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Alguns filósofos da ciência, entre os quais Karl Popper, afirmaram que a
reelaboração científica decorre do fato de ter havido uma mudança no conceito
filosófico-científico da verdade. Esta, como já vimos, foi considerada durante
muitos séculos como a correspondência exata entre uma idéia ou um conceito e a
realidade. Vimos também que, no século passado, foi proposta uma teoria da
verdade como coerência interna entre conceitos. Na concepção anterior, o falso
acontecia quando uma idéia não correspondia à coisa que deveria representar. Na
nova concepção, o falso é a perda da coerência de uma teoria, a existência de
contradições entre seus princípios ou entre estes e alguns de seus conceitos.
Popper afirma que as mudanças científicas são uma conseqüência da concepção
da verdade como coerência teórica. E propõe que uma teoria científica seja
avaliada pela possibilidade de ser falsa ou falsificada.
Uma teoria científica é boa, diz Popper, quanto mais estiver aberta a fatos novos
que possam tornar falsos os princípios e os conceitos em que se baseava. Assim,
o valor de uma teoria não se mede por sua verdade, mas pela possibilidade de ser
falsa. A falseabilidade seria o critério de avaliação das teorias científicas e
garantiria a idéia de progresso científico, pois é a mesma teoria que vai sendo
corrigida por fatos novos que a falsificam.
A maioria dos filósofos da ciência, entre os quais Khun, demonstrou o absurdo
da posição de Popper. De fato, dizem eles, jamais houve um único caso em que
uma teoria pudesse ser falsificada por fatos científicos. Jamais houve um único
caso em que um fato novo garantisse a coerência de uma teoria, bastando impor a
ela mudanças totais.
Cada vez que fatos provocaram verdadeiras e grandes mudanças teóricas, essas
mudanças não foram feitas no sentido de “melhorar” ou “aprimorar” uma teoria
existente, mas no sentido de abandoná-la por uma outra. O papel do fato
científico não é o de falsear ou falsificar uma teoria, mas de provocar o
surgimento de uma nova teoria verdadeira. É o verdadeiro e não o falso que guia
o cientista, seja a verdade entendida como correspondência entre idéia e coisa,
seja entendida como coerência interna das idéias.

Fonte: Livro Convite à Filosofia de Marilena Chaui